Receitas mostram que o jiló pode, sim, combinar com tudo; inclusive no copo.
Foto: FLAVIO TAVARES/O TEMPO
Em 2010, o Comida di Buteco surpreendeu. O controverso jiló, que andava sumido das cozinhas dos bares, era o ingrediente obrigatório dos petiscos que iriam participar daquela edição. Teve gente que chiou, teve gente que amou, teve cozinheiro que tentou esconder o fruto no prato e teve quem desse lugar de destaque. “A ideia era colocar esse ingrediente em outro patamar e acrescentá-lo ao dia a dia de todos os mineiros”, relembra Eduardo Maya, idealizador e um dos organizadores do evento na época. “Quando começou essa edição, a caixa de 20 kg de jiló era R$ 6. No final do evento, a mesma caixa custava R$ 60. Foi um sucesso”, orgulha-se Maya.
Nessa mesma edição de 2010, em que o desafio era cativar os comensais pelo jiló, quem venceu a disputa foi o Bar da Lora, no Mercado Central. O prato vencedor foi o Pura Garra da Lora: tendão bovino com molho de cerveja estilo malzbier, acompanhado de purê de mandioca com queijo e jiló na chapa com linguiça. Fato é que a obrigatoriedade do ingrediente, 15 anos atrás, forçou a criatividade da turma da cozinha.
De lá para cá, o jiló voltou a ocupar um lugar de destaque. Mas ainda falta uma fronteira a ser rompida. Ou melhor, faltava: a de figurar em técnicas e preparos diversos pelas mãos de chefs e mixologistas renomados. O resultado são receitas diferentes e inovadoras, que mostram que o jiló pode, sim, combinar com tudo. Inclusive no copo.
O mixologista Tiago Santos, do Moema Bar, aceitou o desafio de criar uma versão de jiló para beber. O ponto de partida foi uma receita de jiló. “Meu irmão fazia um jiló picadinho em uma salmoura com água, limão e sal, que era ótimo para petiscar”, lembra ele. Da receita, um pedaço do fruto é macerado com limão-tahiti e limão-siciliano, transformando-se em uma caipirinha. “É um pedaço para adicionar uma nota de amargor, bem de leve, ao coquetel”, explica. “Completo o copo com cerveja, bastante gelo e sirvo o drink com uma bordinha de sal e pimenta; fica super-refrescante”, disse.
Há ainda quem evite o gole – ou a garfada – por causa da reputação amarga do fruto. Muitos tentam mascarar esse sabor para agradar aos paladares mais resistentes, mas esse definitivamente não é o caso da chef Bruna Rezende. “Nunca é meu objetivo tirar o amargor do jiló. Sempre digo: ‘Ele é isso que você está vendo, coma se quiser’”, brinca a chef. O jiló, aliás, tornou-se uma marca registrada de Bruna e protagoniza algumas de suas criações mais marcantes.
Quando inaugurou o bar A Porca Voadora, em 2023, um dos petiscos que logo se destacaram foi o jiló recheado e empanado. A receita combina o fruto com joelho de porco, e sua preparação é trabalhosa e exige técnica: o processo leva pelo menos três dias entre cozinhar, retirar a polpa, rechear, empanar, fritar e, finalmente, servir inteiro, acompanhado de um molho de galinha.
Com uma textura firme e um sabor amargo característico, o jiló divide opiniões, mas, nas mãos da chef Bruna Rezende, ele se transforma em uma iguaria que conquista até os mais céticos. “O jiló é um ingrediente versátil, cheio de possibilidades que podem ser exploradas, dependendo dos acompanhamentos”, explica Bruna.
O equilíbrio do sabor amargo do jiló está diretamente ligado ao momento da colheita, que deve ocorrer enquanto o fruto ainda está verde. “Quando está bem novinho, ele ganha até um leve toque adocicado”, explica a chef Jana Barrozo. Apaixonada pelo ingrediente, ela encara o desafio de quebrar a fama negativa em torno do jiló. “Amo jiló. Me sinto motivada pelo preconceito das pessoas que acham que tudo com jiló é ruim. Ele é versátil, bonito e se torna muito interessante quando combinamos com novos sabores”, defende a chef.
Jana incluiu o jiló no cardápio do recém-inaugurado restaurante Rex Bibendi, onde o fruto acompanha a crepinete de porco na brasa – uma receita inspirada na culinária francesa, que consiste em uma espécie de linguiça achatada envolta por uma fina camada de gordura. “O jiló é assado em baixa temperatura com sal e pimenta, depois armazenado a vácuo. No momento de servir, ele é gratinado no forno”, explica a chef. No prato, o jiló surpreende com sua textura: a casca ganha um toque defumado e levemente crocante, enquanto a polpa se mantém cremosa e macia graças à técnica de preparo. Com sabor marcante e textura única, o jiló prova ser um ingrediente versátil e sofisticado nas mãos de quem sabe trabalhá-lo.
Selecionar jilós mais verdes também é o primeiro passo para a receita do restaurante Per Lui, do chef Yves Saliba. Apesar de a intenção não ser mascarar por completo o sabor, o chef explica que o fruto é “banhado” em uma salmoura com gelo para cortar o amargor antes de ser picado em pequenos cubos para uma caponata. “Meu objetivo é deixar o sabor mais delicado.
Justiça para o jiló
O fruto amargo também acompanha o trabalho do chef Caio Soter, do restaurante Pacato. O motivo é uma retratação histórica. “Ele é um ingrediente muito injustiçado. Coentro, pequi, jiló… as pessoas falam que não gostam, mas, muitas vezes, as pessoas só não provaram um prato bem-feito e equilibrado com esses ingredientes”, defende. “Por isso sempre incluo o jiló em versões inteiras, para deixá-lo no lugar de protagonismo”, disse.
Pelas mãos do chef, o fruto já foi envolto em um molho de mostarda em grãos, mel fermentado, limão-capeta e conserva de pimenta. Em outra oportunidade, foi servido em forma de tempurá com bresaola de sol e requeijão escuro.
No menu vigente do Pacato, em que o chef presta uma homenagem ao queijo, o jiló passa por mais uma técnica. O mofo branco, encontrado nos queijos da região do Serro (MG), é inoculado no fruto e, após sete dias, ganha uma casquinha esbranquiçada e mais um toque de amargor. “O segredo é ter equilíbrio em outros sabores, com acidez, dulçor e picância dos outros ingredientes que vão acompanhá-lo”, explica.
Fonte: https://www.otempo.com.br/gastronomia/2025/1/24/